As histórias da história das Cardosinas
À descoberta das Cardosinas A e B!
O apelo da ciência do queijo, de alguma forma, tocou filhos/ investigadores que, no seu percurso de visita a casa, tinham como pano de fundo a Serra da Estrela.
No final da década de 80 o Professor Euclides Pires numa das suas inúmeras viagens para a Guarda, (que integra a região demarcada do Queijo Serra da Estrela), fez a “grande” pergunta:
Que enzima está na flor do cardo e que é responsável por coagular o leite?
Desde essa altura vários investigadores trabalharam no assunto.
O Carlos Faro, então aluno de doutoramento, usando a técnica de cromatografia e de eletroforese, conseguiu isolar e caracterizar uma enzima proteolítica que mais tarde foi denominada de cardosina A.
Este trabalho pioneiro foi apresentado e defendido na tese de doutoramento na Universidade de Coimbra em 1991.
CJFC Faro. Purificação e caracterização físico-química da protease de Cynara cardunculus L. tese (1991)
O mundo da investigação tem histórias muito curiosas.
O mesmo assunto pode ser estudado em partes diferentes do mundo e conduzir à mesma conclusão… ou não!
No caso das enzimas do cardo o assunto foi estudado por duas equipas distintas, em Portugal.
Em 1990, a Professora Salomé Pais, respondendo ao mesmo apelo, concretiza a descoberta de 3 novas enzimas com capacidade de coagular o leite. O protocolo de purificação foi estabelecido com base nas mesmas técnicas que permitiram descobrir as cardosinas, utilizando, no entanto, abordagens ligeiramente diferentes, nomeadamente o pH da solução para extrair as enzimas da flor do cardo.
Essas enzimas foram designadas inicialmente por cinarases 1, 2 e 3 (e mais tarde, por ciprosinas).
Heimgartner, U., Pietrzak, M., Geertsen, R., Brodelius, P., Figueiredo, A.C.D. & Pais, M.S.S. (1990). Purification and partial characterization of milk clotting proteases from flowers of Cynara cardunculus. Phytochemistry 29, 1405–1410.
Os 2 grupos em Portugal dedicados a isolar e caracterizar as enzimas coagulantes presentes em extratos de flor de cardo pareciam estar a chegar a resultados curiosos. Existiriam assim tantas enzimas coagulantes no cardo? As cardosinas e as ciprosinas eram realmente enzimas distintas?
Esta questão ficou por esclarecer durante mais algum tempo...
Mas, entretanto, a história vai sendo construída e, em 1994, mais uma peça de informação é publicada. Ficamos a saber que as três proteinases aspárticas heterodiméricas (ciprosina 1, 2 e 3) com atividade de coagulação do leite mostraram uma pequena diferença, principalmente nas subunidades maiores. Foi também descrito pelos autores que as flores maduras, colhidas em 8 locais diferentes em Portugal, mostraram alguma variação na capacidade de coagular o leite (atividade proteolítica), o que parecia indiciar que cardos de diferentes regiões podiam conter enzimas proteolíticas diferentes.
Cordeiro, M.C., Pais, M.S. & Brodelius, P.E. (1994). Tissue-specific expression of multiple forms of cyprosin (aspartic proteinase) in flowers of Cynara cardunculus. Physiol. Plantarum 20 92, 645–653.
O estabelecimento dos protocolos de purificação permitiu obter quantidades adequadas de proteína, para poderem ser caracterizadas, utilizando as técnicas disponíveis na época. Assim, no início da década de 90, ficámos a saber que as enzimas coagulantes do leite são heterodiméricas, ou seja, são constituídas por duas subunidades, com tamanhos diferentes.
A técnica de electroforese para além de permitir ver o número de subunidades que compõem cada enzima, funciona também como uma espécie de “balança”, que permite determinar o peso de cada subunidade.
A electroforese associada a técnicas de coloração de açúcares, permitiu ver que as subunidades das cardosinas apresentam açúcares ligados e que, por essa razão, são glicoproteínas.
Em 1995 a Paula Veríssimo descobre uma outra enzima a cardosina B e publica o protocolo para a sua purificação. A cardosina B também é uma enzima coagulante de leite, tendo uma maior ação proteolítica que a cardosina A.
Os estudos de comparação da atividade proteolitica e de especificidade da cardosina A e da B, com outras 2 proteases aspárticas de origem animal, a pepsina e a quimosina, permitiram estabelecer que: a cardosina A e a quimosina apresentam especificidade e atividade proteolítica semelhante, enquanto a cardosina B enzimaticamente é mais semelhante à pepsina.
A quimosina existe no estômago de mamíferos jovens e apresenta a atividade proteolítica adequada para degradar as caseínas do leite. A pepsina, que está presente no estômago dos adultos, tem atividade proteolítica adequada para degradar de forma mais extensa todas as proteínas.
Ou seja, a flor do cardo reúne enzimas que apresentam características que se assemelham ao comportamento de 2 enzimas animais envolvidas na digestão!
Faro C, Verissimo P, Lin Y, Tang J, Pires E. Cardosin A and B, aspartic proteases from the flowers of cardoon. Adv Exp Med Biol. 1995; 362:373-7. PubMed. PMID: 8540346.
Paula Veríssimo, Cristina Esteves, Carlos Faro & Euclides Pires. The vegetable rennet of Cynara cardunculus L.contains two proteinases with chymosin and pepsin- like specificities. Biotechnology Letters, volume 17, pages 621–626
Em 1996 a Paula Veríssimo e colaboradores apresentaram a estrutura primária das cardosinas A e B, ou seja, determinaram a sequência de aminoácidos destas enzimas.
Veríssimo, P., Faro, C., Moir, A.J., Lin, Y., Tang, J. & Pires, E. (1996). Purification, characterization and partial amino acid sequencing of two new aspartic proteinases from fresh flowers of Cynara cardunculus L. Eur. J. Biochem. 235, 762–768.
Em 1997 são identificados os tipos de açúcares que se encontram ligados à cardosina A.
Este trabalho resultou de uma parceria do grupo do Professor Euclides Pires com o grupo da Professora Maria Arménia Carrondo (ITQB –Structural Genomics), especialistas em estudos estruturais das proteínas.
Costa, J., Ashford, D.A., Nimtz, M., Bento, I., Frazão, C., Esteves, C., Faro, C., Kervinen, Pires, E., Veríssimo, C., Wlodawer, A., and Carrondo M. A. (1997). The glycosilation of the aspartic proteinase from barley (Hordeum vulgare L.) and cardoon (Cynara cardunculus L.). Eur. J. Biochem. 243, 695-700.
A proposta do mecanismo de ativação das cardosinas foi apresentada em 1998 pela Paula Veríssimo e, no mesmo ano, foram esclarecidos alguns detalhes por Miguel Ramalho-Santos que consegue identificar a pro-cardosina.
Os estudos mostraram que durante a ativação do cardosinogénio é removido um fragmento da cardeia polipeptídica, que foi denominado de PSI (Plant Specific Insert). O artigo também discute o eventual papel do PSI na planta.
Ramalho-Santos, M., Veríssimo, P., Cortes, L., Samyn, B., Van Beeumen, J., Pires, E.& Faro, C. (1998). Identification and proteolytic processing of procardosin A. Eur. J. Biochem. 255, 133–138. 21.
S Ramalho-Santos, M; Pissarra, J; Pires, E; Faro, C Ramalho-Santos, M; Pissarra, J; Pires, E; Faro, C Cardosinogen A - The precursor form of the major aspartic proteinase from cardoon ASPARTIC PROTEINASES: RETROVIRAL AND CELLULAR ENZYMES Advances in Experimental Medicine and Biology 7th International Conference on Aspartic Proteinases OCT 22-27, 1998
A cardosina A, devido à sua abundância na planta (cerca de 60% das proteínas presentes no extrato aquoso das flores do cardo), e facilidade na sua extração por um protocolo relativamente simples, tornou-se umas das enzimas vegetais mais bem caracterizada.
A cardosina A foi a primeira enzima vegetal cuja estrutura foi estabelecida usando a tecnologia de cristalografia Raios-X.
Uma vez descrita a estrutura da cardosina A, também foi importante ter mais informação sobre os açúcares que estão ligados a esta enzima e novos detalhes foram conhecidos.
A ciência que se fazia então em Portugal estava ao nível dos maiores laboratórios mundiais!
Bento I, Frazão C, Coelho R, Wilson K, Dauter Z, Carrondo MA. Crystallization and preliminary X-ray crystallographic studies of the plant aspartic proteinase cardosin A. Acta Crystallogr D Biol Crystallogr. 1998 Sep 1;54(Pt 5):991-3. PubMed PMID: 9757116.
Bento I, Coelho R, Frazão C, Costa J, Faro C, Veríssimo P, Pires E, Cooper J, Dauter Z, Wilson K, Carrondo MA. Crystallisation, structure solution, and initial refinement of plant cardosin-A. Adv Exp Med Biol. 1998; 436:445-52. Review. PubMed PMID: 9580380.
Frazão, C., Bento, I., Costa, J., Soares, C.M., Veríssimo, P., Faro, C., Pires, E., Cooper, J. & Carrondo, M.A. (1999). Crystal structure of cardosin A, a glycosylated and Arg-Gly-Asp-containing aspartic proteinase from the flowers of Cynara cardunculus L. J. Biol. Chem. 274, 27694–27701.
A integração de dados sempre foi uma das preocupações dos investigadores. Reunir informação, quando esta já é vasta e se encontra dispersa por vários artigos científicos é hoje quase uma missão/obrigação de qualquer investigador.
O desafio da integração de dados permite juntar todas as peças de informação e olhar para os dados de forma diferente. Talvez se veja ou se pense em algo que ainda não tínhamos pensado!
O artigo publicado em 1998 pelo Professor Euclides em colaboração com o Professor Jordan Tang, uma referência mundial na área das proteinases aspárticas, constituiu um marco importante na história das cardosinas.
Faro C, Ramalho-Santos M, Veríssimo P, Pissarra J, Frazão C, Costa J, Lin XL, Tang J, Pires E. Structural and functional aspects of cardosins. Adv Exp Med Biol. 1998; 436:423-33. Review. PubMed PMID: 9580379.
À procura dos genes das cardosinas - Cardosinas e ciprosinas são irmãs, primas ou...
Como referido anteriormente, o grupo da Professora Salomé Pais descobriu, em 1990, as enzimas coagulantes presentes no cardo, as cinarases 1, 2 e 3. Mais tarde foi proposta a alteração do nome da proteinase aspártica cinarase para ciprosina.
Quatro anos depois, em 1994 foram isolados e caracterizados os genes responsáveis pelas ciprosinas e descobrem que estão organizados como uma família multigénica.
Cordeiro, M.C., Xue, Z.T., Pietrzak, M., Pais, M.S. & Brodelius, P.E. (1994). Isolation and characterization of a cDNA from flowers of Cynara cardunculus encoding cyprosin (an aspartic proteinase) and its use to study the organ-specific expression of cyprosin. Plant Mol. Biol. 24, 733–741.
O gene da cardosina A é caracterizado em 1999 e nova informação sobre esta proteinase aspártica é publicada. Descobre-se que a cardosina A tem a sequência de aminoácidos RGD, característica associada à interação proteína-proteina.
O gene revela também confirmação da presença de uma sequência de genética, conhecida como PSI (Plant Specific Insert), que é traduzida em proteína, mas não está presente na enzima madura e que, portanto, é removida durante o processo de ativação da cardosina A.
Faro, C., Ramalho-Santos, M., Vieira, M., Mendes, A., Simões, I., Andrade, R., Veríssimo, P., Lin, X., Tang, J. & Pires, E. (1999). Cloning and characterization of cDNA encoding cardosin A, an RGD-containing plant aspartic proteinase. J. Biol. Chem. 274, 28724–28729.
Paula Veríssimo tinha sugerido em 1996 (Veríssimo, P et al., Eur. J. Biochem. 235, 762–768) que as cardosinas A e B seriam produtos resultantes de genes diferentes e em 2001 o grupo do Professor Carlos Faro publica a caracterização do gene da cardosina B. Foi demonstrado que cardosina A e B são produtos de genes diferentes.
Vieira, M., Pissarra, J., Veríssimo, P., Castanheira, P., Costa, Y., Pires, E. & Faro, C. (2001). Molecular cloning and characterization of cDNA encoding cardosin B, an aspartic proteinase accumulating extracellularly in the transmitting tissue of Cynara cardunculus L. Plant Mol. Biol. 45, 529–539.
Em 2007, uma nova colaboração do Laboratório do Professor Euclides, agora com a Professora Claudina Rodrigues-Pousada (1941-2021), permitiu mostrar que as proteinases aspárticas do cardo são de facto codificadas por uma família multigénica, composta por, pelo menos seis membros, e revelam a coexistência de cardosinas e ciprosinas dentro da mesma planta.
O estudo permitiu ainda identificar os genes de duas novas proteinases aspárticas do cardo, que foram denominadas de cardosina C e cardosina D. Estas duas potenciais enzimas até ao momento ainda não foram encontradas no cardo!
Pimentel C, Van Der Straeten D, Pires E, Faro C, Rodrigues-Pousada C. Characterization and expression analysis of the aspartic protease gene family of Cynara cardunculus L. FEBS J. 2007 May; 274(10):2523-39. Epub 2007 Apr 13. PubMed PMID: 17433048.
Mais cardosinas – Uma questão de (bio)diversidade!
A primeira década de 2000 continua a trazer novas descobertas sobre as proteinases aspárticas do cardo!
Em 2009, Cristina Esteves, aluna de doutoramento da Professora Marlene Barros e do Professor Euclides, descobriu novas cardosinas.
Pois é verdade, quando se pensava que já se sabia tudo sobre cardos e cardosinas descobre-se em Portugal um “novo tipo” de cardo a partir do qual foram isoladas novas enzimas coagulantes.
As cardosinas A e B ganhavam novas companheiras, as cardosinas E, F, G e H.
Estas novas cardosinas também são constituídas por 2 subunidades glicosiladas.
Embora as novas cardosinas sejam muito parecidas em termos de sequência de aminoácidos (estrutura primária – por ligação a imagem), elas apresentam em algumas posições a substituição de alguns aminoácidos o que lhes conferem características distintas. As novas cardosinas têm especificidade e atividades distintas das demais, ou seja, gostam de cortar ligações peptídicas diferentes e com velocidades diferentes o que pode ter influência no processo de coagulação do leite.
Sarmento AC, Lopes H, Oliveira CS, Vitorino R, Samyn B, Sergeant K, Debyser G, Van Beeumen J, Domingues P, Amado F, Pires E, Domingues MR, Barros MT. Multiplicity of aspartic proteinases from Cynara cardunculus L. Planta. 2009 Jul;230(2):429-39. doi: 10.1007/s00425-009-0948-9. Epub 2009 Jun 2. PubMed PMID: 19488781.
Como começavam a surgir evidências da existência de diferentes genótipos de cardo que continham proporções diferentes das diferentes cardosinas (A, B, E, F, G e H), foi estabelecido o projeto CARDOP com o objetivo de estabelecer em campos experimentais os diversos ecótipos de cardo.
A caracterização e seguimento dos campos experimentais permitiu a Paulo Barracosa, em 2018, identificar seis genótipos de cardos, que revelaram uma grande diversidade em termos de conteúdos e concentrações de cada uma das cardosinas.
Este conhecimento constituiu a base para o desenvolvimento do projeto iCheese, que tem como um dos seus objetivos a seleção dos genótipos de cardo adequados para serem utilizados como fonte das enzimas coagulantes adequadas à produção dos diferentes tipos de queijos DOP nacionais, coagulados com cardo.
Barracosa P, Rosa N, Barros M, Pires E. Selected Cardoon (Cynara cardunculus L.) Genotypes Suitable for PDO Cheeses in Mediterranean Regions. Chem Biodivers. 2018 Jul;15(7): e1800110. doi: 10.1002/cbdv.201800110. Epub 2018 Jul 3. PubMed. PMID: 29790297.
Para além da aplicação na indústria do queijo – as aplicações biomédicas das cardosinas
Tendo a atividade proteolítica demonstrada para a cardosina A, a equipa liderada pela Professora Marlene Barros explorou o potencial biomédico das cardosinas. Numa fase inicial, foi caracterizada a atividade colagenolítica da cardosina A, o que permitiu, em 2005, apresentar o seu potencial biomédico em processos onde o colagénio se pretende degradado, como, por exemplo, em fibroses pós-cirúrgicas. Neste contexto, foi desenvolvida investigação para imobilização e libertação controlada de cardosina A em esponjas de quitosano.
Duarte AS, Pereira AO, Cabrita AM, Moir AJ, Pires EM, Barros MM. The characterisation of the collagenolytic activity of cardosin A demonstrates its potential application for extracellular matrix degradative processes. Curr Drug Discov Technol. 2005 Mar;2(1):37-44. PMID: 16472240.
Pereira AO, Cartucho DJ, Duarte AS, Gil MH, Cabrita AM, Patrício JA, Barros MM. Immobilisation of cardosin A in chitosan sponges as a novel implant for drug delivery. Curr Drug Discov Technol. 2005 Dec;2(4):231-8. PMID: 16475919.
A aplicação das cardosinas para o estabelecimento de culturas neuronais primárias foi iniciada por Nuno Rosa em 2001. Ana Sofia Duarte, no âmbito da sua tese de doutoramento (supervisionada pelos Professores Marlene Barros e Euclides Pires), estudou o efeito molecular e celular das cardosinas em culturas de neurónios corticais.
Destes estudos foi possível concluir que, em relação a outra enzima – a tripsina - utilizada em protocolos de estabelecimento de culturas neuronais, o uso das cardosinas melhoram a regeneração neuronal nos estágios iniciais da cultura após o isolamento das células. Foi ainda possível relacionar o papel da sequência RGD (identificada na sequência da cardosina A, por Carlos Faro em 1999) na regeneração de tecido neuronal após lesão.
Duarte AS, Rosa N, Duarte EP, Pires E, Barros MT. Cardosins: a new and efficient plant enzymatic tool to dissociate neuronal cells for the establishment of cell cultures. Biotechnol Bioeng. 2007 Jul 1;97(4):991-6. doi: 10.1002/bit.21259. PMID: 17099909
Duarte AS, Duarte EP, Correia A, Pires E, Barros MT. Cardosins improve neuronal regeneration after cell disruption: a comparative expression study. Cell Biol Toxicol. 2009 Apr;25(2):99-108. doi: 10.1007/s10565-008-9058-x. Epub 2008 Jan 19. PMID: 18205021
Pela história das cardosinas, aqui resumida, é possível confirmar que, para além de multigénicas, estas proteinases aspárticas são multifacetadas exercendo, não apenas as suas funções biológicas no desenvolvimento da flor do cardo, mas também uma diversidade de outras funções com aplicação prática na biotecnologia e biomedicina.
O potencial biomédico da planta Cynara cardunculus
...mas, nem só de cardosinas vive o cardo...
A história das cardosinas mostrou já o elevado potencial destas proteínas, não só na área agroalimentar, mas também na biomedicina.
No entanto, outros constituintes da planta Cynara cardunculus têm vindo a ser estudados como potenciais compostos bioativos para aplicações na área da medicina.
Esta planta é rica em compostos fenólicos, minerais, fibras, inulina, terpenos e lactonas. Estes constituintes bioativos têm sido amplamente descritos na literatura científica, exibindo inúmeros efeitos benéficos para a saúde atuando como agentes anti-inflamatórios, antioxidantes antitumorais, antidiabéticos, etc.
Estas importantes características da planta C. cardunculus levou muitos investigadores espalhados pelo mundo a estudarem as aplicações biomédicas desta planta.
Nos últimos 5 anos é possível encontrar diversos artigos científicos que destacam a aplicação desta planta como anti-inflamatórios, antitumorais, no tratamento de esteatose hepática e diabetes, como atividade anti-obesidade, ou contribuindo para a cicatrização de feridas crónicas.
Cynara cardunculus como regulador do metabolismo e no tratamento de doenças hepáticas
Vários estudos têm mostrado o efeito nutracêutico dos componentes bioativos da C. carduncuus no tratamento de distúrbios metabólicos, especialmente associados com atividades hepatoprotectivas, hipolipidémicas e antidiabéticas.
Em 2020, o grupo de Oppedisano demonstrou o efeito dos extratos de folhas da planta C. cardunculus em ratos alimentados com uma dieta rica em gorduras. Nos animais com este tido de dieta e suplementados com 10 ou 20 mg/Kg de extrato observou-se uma redução dos níveis totais de colesterol, triglicerídeos e malondialdeído, quando comparados com o grupo que não foi suplementado com C. cardunculus.
Oppedisano, Francesca, Carolina Muscoli, Vincenzo Musolino, Cristina Carresi, Roberta Macrì, Caterina Giancotta, Francesca Bosco, Jessica Maiuolo, Federica Scarano, Sara Paone, Saverio Nucera, Maria Caterina Zito, Miriam Scicchitano, Stefano Ruga, Monica Ragusa, Ernesto Palma, Annamaria Tavernese, Rocco Mollace, Ezio Bombardelli, and Vincenzo Mollace. 2020. "The Protective Effect of Cynara Cardunculus Extract in Diet-Induced NAFLD: Involvement of OCTN1 and OCTN2 Transporter Subfamily" Nutrients 12, no. 5: 1435. https://doi.org/10.3390/nu12051435
O efeito hepatoprotetor dos extratos polifenólicos de C. cardunculus foi também estudado.
Num ensaio clínico conduzido por Musolino, pacientes adultos com historial clínico de Diabetes Mellitus Tipo 2 e Doença Hepática Gordurosa Não-Alcólica foram suplementados com 300mg/dia do extrato desta planta.
Os resultados mostraram que após 16 semanas de suplementação com o extrato ocorreu a diminuição dos níveis serológicos de aspartato aminotransferase e de alanina aminotransferase, biomarcadores de doenças hepáticas.
Vincenzo Musolino, Micaela Gliozzi, Ezio Bombardelli, Saverio Nucera, Cristina Carresi, Jessica Maiuolo, Rocco Mollace, Sara Paone, Francesca Bosco, Federica Scarano, Miriam Scicchitano, Roberta Macrì, Stefano Ruga, Maria Caterina Zito, Ernesto Palma, Santo Gratteri, Monica Ragusa, Maurizio Volterrani, Massimo Fini, Vincenzo Mollace, (2020)The synergistic effect of Citrus bergamia and Cynara cardunculus extracts on vascular inflammation and oxidative stress in non-alcoholic fatty liver disease, Journal of Traditional and Complementary Medicine, 10, 268. DOI: 10.1016/j.jtcme.2020.02.004.
Para uma revisão da literatura sobre o potencial biomédico de extratos de C. cardunculus no tratamento de distúrbios do metabolismo consultar:
Silva, L.R.; Jacinto, T.A.; outinho, P. Bioactive Compounds from Cardoon as Health Promoters in Metabolic Disorders. Foods 2022, 11, 336. https://doi.org/10.3390/foods11030336.
O potencial anti-inflamatório da Cynara cardunculus
Em 2020, os extratos etanólicos das folhas de C. cardunculus foram usados para preparar filmes à base de quitosano para ser usados como curativos em feridas crónicas.
Este interessante estudo demostrou que estes filmes apresentam atividade anti-inflamatória, promovendo a redução nos níveis da citocina pró-inflamatória IL-6 numa linha celular de fibroblastos da pele, mostrando o seu potencial no tratamento de feridas crónicas.
Teresa Brás, Daniela Rosa, Ana C. Gonçalves, Andreia C. Gomes, Vítor D. Alves, João G. Crespo, Maria F. Duarte, Luísa A. Neves, (2020) Development of bioactive films based on chitosan and Cynara cardunculus leaves extracts for wound dressings, International Journal of Biological Macromolecules, 163:1707. DOI: 10.1016/j.ijbiomac.2020.09.109
O efeito anti-inflamatório na Doença Inflamatória do Intestino dos extratos das folhas da C. cardunculus, foi estudado em 2022 por um grupo de investigação italiano.
Através de estudos in vitro, estes extratos ricos em compostos polifenólicos, demonstraram proteger as células epiteliais intestinais do estímulo inflamatório, modulando as vias de sinalização celular envolvidas na inflamação através da neutralização dos efeitos pró-inflamatórios induzidos pela citocina TNF-α.
Speciale A, Muscarà C, Molonia MS, Toscano G, Cimino F and Saija A (2022) In Vitro Protective Effects of a Standardized Extract From Cynara Cardunculus L. Leaves Against TNF-α- Induced Intestinal Inflammation. Front. Pharmacol. 13:809938. doi: 10.3389/fphar.2022.809938
Cynara cardunculus no tratamento do cancro
As propriedades antitumorais de vários extratos de plantas, incluindo a C. cardunculus, foram estudadas numa linha celular tumoral de osteossarcoma (células U2OS). Este estudo mostrou que os extratos desta planta são ricos em lactonas e possuem elevada atividade anti-proliferativa. O mecanismo de ação destes extratos sob esta linha celular tumoral foi justificado através da ativação das caspases, proteínas responsáveis pela morte celular por apoptose.
Cappadone, Concettina, Manuela Mandrone, Ilaria Chiocchio, Cinzia Sanna, Emil Malucelli, Vincenza Bassi, Giovanna Picone, and Ferruccio Poli. 2020. "Antitumor Potential and Phytochemical Profile of Plants from Sardinia (Italy), a Hotspot for Biodiversity in the Mediterranean Basin" Plants 9, no. 1: 26. https://doi.org/10.3390/plants9010026
Em 2022, um interessante estudo mostrou que os extratos lipofílicos das folhas da C. cardunculus conseguem modular o ritmo circadiano das células tumorais, aliando propriedades anti-proliferativas. É sabido que ciclos circadianos desregulados estão associados a maior suscetibilidade de cancro e pior resposta aos tratamentos. Este ciclo é controlado por genes específicos que estão envolvidos em processos celulares associados com a progressão do tumor, metabolismo de fármacos e ciclo celular. Neste estudo, os extratos da C. cardunculus mostraram um efeito direto no fenótipo circadiano das células tumorais do cancro colorretal humano (HCT116) e inibiram a proliferação destas células.
Fuhr, L.; Basti, A.; Brás, T.S.; Duarte, M.F.; Relógio, A. Antiproliferative Effects of Cynara Cardunculus in Colorectal Cancer Cells Are Modulated by the Circadian Clock. Int. J. Mol. Sci. 2022, 23, 9130. https://doi.org/10.3390/ ijms23169130
Com o crescente interesse da comunidade científica nas propriedades biológicas dos extratos da planta do cardo, não será de estranhar que novas aplicações biomédicas venham a ser descobertas e publicadas.
As histórias da história das Cardosinas
À descoberta das Cardosinas A e B!
O apelo da ciência do queijo, de alguma forma, tocou filhos/ investigadores que, no seu percurso de visita a casa, tinham como pano de fundo a Serra da Estrela.
No final da década de 80 o Professor Euclides Pires numa das suas inúmeras viagens para a Guarda, (que integra a região demarcada do Queijo Serra da Estrela), fez a “grande” pergunta:
Que enzima está na flor do cardo e que é responsável por coagular o leite?
Desde essa altura vários investigadores trabalharam no assunto.
O Carlos Faro, então aluno de doutoramento, usando a técnica de cromatografia e de eletroforese, conseguiu isolar e caracterizar uma enzima proteolítica que mais tarde foi denominada de cardosina A.
Este trabalho pioneiro foi apresentado e defendido na tese de doutoramento na Universidade de Coimbra em 1991.
CJFC Faro. Purificação e caracterização físico-química da protease de Cynara cardunculus L. tese (1991)
O mundo da investigação tem histórias muito curiosas.
O mesmo assunto pode ser estudado em partes diferentes do mundo e conduzir à mesma conclusão… ou não!
No caso das enzimas do cardo o assunto foi estudado por duas equipas distintas, em Portugal.
Em 1990, a Professora Salomé Pais, respondendo ao mesmo apelo, concretiza a descoberta de 3 novas enzimas com capacidade de coagular o leite. O protocolo de purificação foi estabelecido com base nas mesmas técnicas que permitiram descobrir as cardosinas, utilizando, no entanto, abordagens ligeiramente diferentes, nomeadamente o pH da solução para extrair as enzimas da flor do cardo.
Essas enzimas foram designadas inicialmente por cinarases 1, 2 e 3 (e mais tarde, por ciprosinas).
Heimgartner, U., Pietrzak, M., Geertsen, R., Brodelius, P., Figueiredo, A.C.D. & Pais, M.S.S. (1990). Purification and partial characterization of milk clotting proteases from flowers of Cynara cardunculus. Phytochemistry 29, 1405–1410.
Os 2 grupos em Portugal dedicados a isolar e caracterizar as enzimas coagulantes presentes em extratos de flor de cardo pareciam estar a chegar a resultados curiosos. Existiriam assim tantas enzimas coagulantes no cardo? As cardosinas e as ciprosinas eram realmente enzimas distintas?
Esta questão ficou por esclarecer durante mais algum tempo...
Mas, entretanto, a história vai sendo construída e, em 1994, mais uma peça de informação é publicada. Ficamos a saber que as três proteinases aspárticas heterodiméricas (ciprosina 1, 2 e 3) com atividade de coagulação do leite mostraram uma pequena diferença, principalmente nas subunidades maiores. Foi também descrito pelos autores que as flores maduras, colhidas em 8 locais diferentes em Portugal, mostraram alguma variação na capacidade de coagular o leite (atividade proteolítica), o que parecia indiciar que cardos de diferentes regiões podiam conter enzimas proteolíticas diferentes.
Cordeiro, M.C., Pais, M.S. & Brodelius, P.E. (1994). Tissue-specific expression of multiple forms of cyprosin (aspartic proteinase) in flowers of Cynara cardunculus. Physiol. Plantarum 20 92, 645–653.
O estabelecimento dos protocolos de purificação permitiu obter quantidades adequadas de proteína, para poderem ser caracterizadas, utilizando as técnicas disponíveis na época. Assim, no início da década de 90, ficámos a saber que as enzimas coagulantes do leite são heterodiméricas, ou seja, são constituídas por duas subunidades, com tamanhos diferentes.
A técnica de electroforese para além de permitir ver o número de subunidades que compõem cada enzima, funciona também como uma espécie de “balança”, que permite determinar o peso de cada subunidade.
A electroforese associada a técnicas de coloração de açúcares, permitiu ver que as subunidades das cardosinas apresentam açúcares ligados e que, por essa razão, são glicoproteínas.
Em 1995 a Paula Veríssimo descobre uma outra enzima a cardosina B e publica o protocolo para a sua purificação. A cardosina B também é uma enzima coagulante de leite, tendo uma maior ação proteolítica que a cardosina A.
Os estudos de comparação da atividade proteolitica e de especificidade da cardosina A e da B, com outras 2 proteases aspárticas de origem animal, a pepsina e a quimosina, permitiram estabelecer que: a cardosina A e a quimosina apresentam especificidade e atividade proteolítica semelhante, enquanto a cardosina B enzimaticamente é mais semelhante à pepsina.
A quimosina existe no estômago de mamíferos jovens e apresenta a atividade proteolítica adequada para degradar as caseínas do leite. A pepsina, que está presente no estômago dos adultos, tem atividade proteolítica adequada para degradar de forma mais extensa todas as proteínas.
Ou seja, a flor do cardo reúne enzimas que apresentam características que se assemelham ao comportamento de 2 enzimas animais envolvidas na digestão!
Faro C, Verissimo P, Lin Y, Tang J, Pires E. Cardosin A and B, aspartic proteases from the flowers of cardoon. Adv Exp Med Biol. 1995; 362:373-7. PubMed. PMID: 8540346.
Paula Veríssimo, Cristina Esteves, Carlos Faro & Euclides Pires. The vegetable rennet of Cynara cardunculus L.contains two proteinases with chymosin and pepsin- like specificities. Biotechnology Letters, volume 17, pages 621–626
Em 1996 a Paula Veríssimo e colaboradores apresentaram a estrutura primária das cardosinas A e B, ou seja, determinaram a sequência de aminoácidos destas enzimas.
Veríssimo, P., Faro, C., Moir, A.J., Lin, Y., Tang, J. & Pires, E. (1996). Purification, characterization and partial amino acid sequencing of two new aspartic proteinases from fresh flowers of Cynara cardunculus L. Eur. J. Biochem. 235, 762–768.
Em 1997 são identificados os tipos de açúcares que se encontram ligados à cardosina A.
Este trabalho resultou de uma parceria do grupo do Professor Euclides Pires com o grupo da Professora Maria Arménia Carrondo (ITQB –Structural Genomics), especialistas em estudos estruturais das proteínas.
Costa, J., Ashford, D.A., Nimtz, M., Bento, I., Frazão, C., Esteves, C., Faro, C., Kervinen, Pires, E., Veríssimo, C., Wlodawer, A., and Carrondo M. A. (1997). The glycosilation of the aspartic proteinase from barley (Hordeum vulgare L.) and cardoon (Cynara cardunculus L.). Eur. J. Biochem. 243, 695-700.
A proposta do mecanismo de ativação das cardosinas foi apresentada em 1998 pela Paula Veríssimo e, no mesmo ano, foram esclarecidos alguns detalhes por Miguel Ramalho-Santos que consegue identificar a pro-cardosina.
Os estudos mostraram que durante a ativação do cardosinogénio é removido um fragmento da cardeia polipeptídica, que foi denominado de PSI (Plant Specific Insert). O artigo também discute o eventual papel do PSI na planta.
Ramalho-Santos, M., Veríssimo, P., Cortes, L., Samyn, B., Van Beeumen, J., Pires, E.& Faro, C. (1998). Identification and proteolytic processing of procardosin A. Eur. J. Biochem. 255, 133–138. 21.
S Ramalho-Santos, M; Pissarra, J; Pires, E; Faro, C Ramalho-Santos, M; Pissarra, J; Pires, E; Faro, C Cardosinogen A - The precursor form of the major aspartic proteinase from cardoon ASPARTIC PROTEINASES: RETROVIRAL AND CELLULAR ENZYMES Advances in Experimental Medicine and Biology 7th International Conference on Aspartic Proteinases OCT 22-27, 1998
A cardosina A, devido à sua abundância na planta (cerca de 60% das proteínas presentes no extrato aquoso das flores do cardo), e facilidade na sua extração por um protocolo relativamente simples, tornou-se umas das enzimas vegetais mais bem caracterizada.
A cardosina A foi a primeira enzima vegetal cuja estrutura foi estabelecida usando a tecnologia de cristalografia Raios-X.
Uma vez descrita a estrutura da cardosina A, também foi importante ter mais informação sobre os açúcares que estão ligados a esta enzima e novos detalhes foram conhecidos.
A ciência que se fazia então em Portugal estava ao nível dos maiores laboratórios mundiais!
Bento I, Frazão C, Coelho R, Wilson K, Dauter Z, Carrondo MA. Crystallization and preliminary X-ray crystallographic studies of the plant aspartic proteinase cardosin A. Acta Crystallogr D Biol Crystallogr. 1998 Sep 1;54(Pt 5):991-3. PubMed PMID: 9757116.
Bento I, Coelho R, Frazão C, Costa J, Faro C, Veríssimo P, Pires E, Cooper J, Dauter Z, Wilson K, Carrondo MA. Crystallisation, structure solution, and initial refinement of plant cardosin-A. Adv Exp Med Biol. 1998; 436:445-52. Review. PubMed PMID: 9580380.
Frazão, C., Bento, I., Costa, J., Soares, C.M., Veríssimo, P., Faro, C., Pires, E., Cooper, J. & Carrondo, M.A. (1999). Crystal structure of cardosin A, a glycosylated and Arg-Gly-Asp-containing aspartic proteinase from the flowers of Cynara cardunculus L. J. Biol. Chem. 274, 27694–27701.
A integração de dados sempre foi uma das preocupações dos investigadores. Reunir informação, quando esta já é vasta e se encontra dispersa por vários artigos científicos é hoje quase uma missão/obrigação de qualquer investigador.
O desafio da integração de dados permite juntar todas as peças de informação e olhar para os dados de forma diferente. Talvez se veja ou se pense em algo que ainda não tínhamos pensado!
O artigo publicado em 1998 pelo Professor Euclides em colaboração com o Professor Jordan Tang, uma referência mundial na área das proteinases aspárticas, constituiu um marco importante na história das cardosinas.
Faro C, Ramalho-Santos M, Veríssimo P, Pissarra J, Frazão C, Costa J, Lin XL, Tang J, Pires E. Structural and functional aspects of cardosins. Adv Exp Med Biol. 1998; 436:423-33. Review. PubMed PMID: 9580379.
À procura dos genes das cardosinas - Cardosinas e ciprosinas são irmãs, primas ou...
Como referido anteriormente, o grupo da Professora Salomé Pais descobriu, em 1990, as enzimas coagulantes presentes no cardo, as cinarases 1, 2 e 3. Mais tarde foi proposta a alteração do nome da proteinase aspártica cinarase para ciprosina.
Quatro anos depois, em 1994 foram isolados e caracterizados os genes responsáveis pelas ciprosinas e descobrem que estão organizados como uma família multigénica.
Cordeiro, M.C., Xue, Z.T., Pietrzak, M., Pais, M.S. & Brodelius, P.E. (1994). Isolation and characterization of a cDNA from flowers of Cynara cardunculus encoding cyprosin (an aspartic proteinase) and its use to study the organ-specific expression of cyprosin. Plant Mol. Biol. 24, 733–741.
O gene da cardosina A é caracterizado em 1999 e nova informação sobre esta proteinase aspártica é publicada. Descobre-se que a cardosina A tem a sequência de aminoácidos RGD, característica associada à interação proteína-proteina.
O gene revela também confirmação da presença de uma sequência de genética, conhecida como PSI (Plant Specific Insert), que é traduzida em proteína, mas não está presente na enzima madura e que, portanto, é removida durante o processo de ativação da cardosina A.
Faro, C., Ramalho-Santos, M., Vieira, M., Mendes, A., Simões, I., Andrade, R., Veríssimo, P., Lin, X., Tang, J. & Pires, E. (1999). Cloning and characterization of cDNA encoding cardosin A, an RGD-containing plant aspartic proteinase. J. Biol. Chem. 274, 28724–28729.
Paula Veríssimo tinha sugerido em 1996 (Veríssimo, P et al., Eur. J. Biochem. 235, 762–768) que as cardosinas A e B seriam produtos resultantes de genes diferentes e em 2001 o grupo do Professor Carlos Faro publica a caracterização do gene da cardosina B. Foi demonstrado que cardosina A e B são produtos de genes diferentes.
Vieira, M., Pissarra, J., Veríssimo, P., Castanheira, P., Costa, Y., Pires, E. & Faro, C. (2001). Molecular cloning and characterization of cDNA encoding cardosin B, an aspartic proteinase accumulating extracellularly in the transmitting tissue of Cynara cardunculus L. Plant Mol. Biol. 45, 529–539.
Em 2007, uma nova colaboração do Laboratório do Professor Euclides, agora com a Professora Claudina Rodrigues-Pousada (1941-2021), permitiu mostrar que as proteinases aspárticas do cardo são de facto codificadas por uma família multigénica, composta por, pelo menos seis membros, e revelam a coexistência de cardosinas e ciprosinas dentro da mesma planta.
O estudo permitiu ainda identificar os genes de duas novas proteinases aspárticas do cardo, que foram denominadas de cardosina C e cardosina D. Estas duas potenciais enzimas até ao momento ainda não foram encontradas no cardo!
Pimentel C, Van Der Straeten D, Pires E, Faro C, Rodrigues-Pousada C. Characterization and expression analysis of the aspartic protease gene family of Cynara cardunculus L. FEBS J. 2007 May; 274(10):2523-39. Epub 2007 Apr 13. PubMed PMID: 17433048.
Mais cardosinas – Uma questão de (bio)diversidade!
A primeira década de 2000 continua a trazer novas descobertas sobre as proteinases aspárticas do cardo!
Em 2009, Cristina Esteves, aluna de doutoramento da Professora Marlene Barros e do Professor Euclides, descobriu novas cardosinas.
Pois é verdade, quando se pensava que já se sabia tudo sobre cardos e cardosinas descobre-se em Portugal um “novo tipo” de cardo a partir do qual foram isoladas novas enzimas coagulantes.
As cardosinas A e B ganhavam novas companheiras, as cardosinas E, F, G e H.
Estas novas cardosinas também são constituídas por 2 subunidades glicosiladas.
Embora as novas cardosinas sejam muito parecidas em termos de sequência de aminoácidos (estrutura primária – por ligação a imagem), elas apresentam em algumas posições a substituição de alguns aminoácidos o que lhes conferem características distintas. As novas cardosinas têm especificidade e atividades distintas das demais, ou seja, gostam de cortar ligações peptídicas diferentes e com velocidades diferentes o que pode ter influência no processo de coagulação do leite.
Sarmento AC, Lopes H, Oliveira CS, Vitorino R, Samyn B, Sergeant K, Debyser G, Van Beeumen J, Domingues P, Amado F, Pires E, Domingues MR, Barros MT. Multiplicity of aspartic proteinases from Cynara cardunculus L. Planta. 2009 Jul;230(2):429-39. doi: 10.1007/s00425-009-0948-9. Epub 2009 Jun 2. PubMed PMID: 19488781.
Como começavam a surgir evidências da existência de diferentes genótipos de cardo que continham proporções diferentes das diferentes cardosinas (A, B, E, F, G e H), foi estabelecido o projeto CARDOP com o objetivo de estabelecer em campos experimentais os diversos ecótipos de cardo.
A caracterização e seguimento dos campos experimentais permitiu a Paulo Barracosa, em 2018, identificar seis genótipos de cardos, que revelaram uma grande diversidade em termos de conteúdos e concentrações de cada uma das cardosinas.
Este conhecimento constituiu a base para o desenvolvimento do projeto iCheese, que tem como um dos seus objetivos a seleção dos genótipos de cardo adequados para serem utilizados como fonte das enzimas coagulantes adequadas à produção dos diferentes tipos de queijos DOP nacionais, coagulados com cardo.
Barracosa P, Rosa N, Barros M, Pires E. Selected Cardoon (Cynara cardunculus L.) Genotypes Suitable for PDO Cheeses in Mediterranean Regions. Chem Biodivers. 2018 Jul;15(7): e1800110. doi: 10.1002/cbdv.201800110. Epub 2018 Jul 3. PubMed. PMID: 29790297.
Para além da aplicação na indústria do queijo – as aplicações biomédicas das cardosinas
Tendo a atividade proteolítica demonstrada para a cardosina A, a equipa liderada pela Professora Marlene Barros explorou o potencial biomédico das cardosinas. Numa fase inicial, foi caracterizada a atividade colagenolítica da cardosina A, o que permitiu, em 2005, apresentar o seu potencial biomédico em processos onde o colagénio se pretende degradado, como, por exemplo, em fibroses pós-cirúrgicas. Neste contexto, foi desenvolvida investigação para imobilização e libertação controlada de cardosina A em esponjas de quitosano.
Duarte AS, Pereira AO, Cabrita AM, Moir AJ, Pires EM, Barros MM. The characterisation of the collagenolytic activity of cardosin A demonstrates its potential application for extracellular matrix degradative processes. Curr Drug Discov Technol. 2005 Mar;2(1):37-44. PMID: 16472240.
Pereira AO, Cartucho DJ, Duarte AS, Gil MH, Cabrita AM, Patrício JA, Barros MM. Immobilisation of cardosin A in chitosan sponges as a novel implant for drug delivery. Curr Drug Discov Technol. 2005 Dec;2(4):231-8. PMID: 16475919.
A aplicação das cardosinas para o estabelecimento de culturas neuronais primárias foi iniciada por Nuno Rosa em 2001. Ana Sofia Duarte, no âmbito da sua tese de doutoramento (supervisionada pelos Professores Marlene Barros e Euclides Pires), estudou o efeito molecular e celular das cardosinas em culturas de neurónios corticais.
Destes estudos foi possível concluir que, em relação a outra enzima – a tripsina - utilizada em protocolos de estabelecimento de culturas neuronais, o uso das cardosinas melhoram a regeneração neuronal nos estágios iniciais da cultura após o isolamento das células. Foi ainda possível relacionar o papel da sequência RGD (identificada na sequência da cardosina A, por Carlos Faro em 1999) na regeneração de tecido neuronal após lesão.
Duarte AS, Rosa N, Duarte EP, Pires E, Barros MT. Cardosins: a new and efficient plant enzymatic tool to dissociate neuronal cells for the establishment of cell cultures. Biotechnol Bioeng. 2007 Jul 1;97(4):991-6. doi: 10.1002/bit.21259. PMID: 17099909
Duarte AS, Duarte EP, Correia A, Pires E, Barros MT. Cardosins improve neuronal regeneration after cell disruption: a comparative expression study. Cell Biol Toxicol. 2009 Apr;25(2):99-108. doi: 10.1007/s10565-008-9058-x. Epub 2008 Jan 19. PMID: 18205021
Pela história das cardosinas, aqui resumida, é possível confirmar que, para além de multigénicas, estas proteinases aspárticas são multifacetadas exercendo, não apenas as suas funções biológicas no desenvolvimento da flor do cardo, mas também uma diversidade de outras funções com aplicação prática na biotecnologia e biomedicina.
O potencial biomédico da planta Cynara cardunculus
...mas, nem só de cardosinas vive o cardo...
A história das cardosinas mostrou já o elevado potencial destas proteínas, não só na área agroalimentar, mas também na biomedicina.
No entanto, outros constituintes da planta Cynara cardunculus têm vindo a ser estudados como potenciais compostos bioativos para aplicações na área da medicina.
Esta planta é rica em compostos fenólicos, minerais, fibras, inulina, terpenos e lactonas. Estes constituintes bioativos têm sido amplamente descritos na literatura científica, exibindo inúmeros efeitos benéficos para a saúde atuando como agentes anti-inflamatórios, antioxidantes antitumorais, antidiabéticos, etc.
Estas importantes características da planta C. cardunculus levou muitos investigadores espalhados pelo mundo a estudarem as aplicações biomédicas desta planta.
Nos últimos 5 anos é possível encontrar diversos artigos científicos que destacam a aplicação desta planta como anti-inflamatórios, antitumorais, no tratamento de esteatose hepática e diabetes, como atividade anti-obesidade, ou contribuindo para a cicatrização de feridas crónicas.
Cynara cardunculus como regulador do metabolismo e no tratamento de doenças hepáticas
Vários estudos têm mostrado o efeito nutracêutico dos componentes bioativos da C. carduncuus no tratamento de distúrbios metabólicos, especialmente associados com atividades hepatoprotectivas, hipolipidémicas e antidiabéticas.
Em 2020, o grupo de Oppedisano demonstrou o efeito dos extratos de folhas da planta C. cardunculus em ratos alimentados com uma dieta rica em gorduras. Nos animais com este tido de dieta e suplementados com 10 ou 20 mg/Kg de extrato observou-se uma redução dos níveis totais de colesterol, triglicerídeos e malondialdeído, quando comparados com o grupo que não foi suplementado com C. cardunculus.
Oppedisano, Francesca, Carolina Muscoli, Vincenzo Musolino, Cristina Carresi, Roberta Macrì, Caterina Giancotta, Francesca Bosco, Jessica Maiuolo, Federica Scarano, Sara Paone, Saverio Nucera, Maria Caterina Zito, Miriam Scicchitano, Stefano Ruga, Monica Ragusa, Ernesto Palma, Annamaria Tavernese, Rocco Mollace, Ezio Bombardelli, and Vincenzo Mollace. 2020. "The Protective Effect of Cynara Cardunculus Extract in Diet-Induced NAFLD: Involvement of OCTN1 and OCTN2 Transporter Subfamily" Nutrients 12, no. 5: 1435. https://doi.org/10.3390/nu12051435
O efeito hepatoprotetor dos extratos polifenólicos de C. cardunculus foi também estudado.
Num ensaio clínico conduzido por Musolino, pacientes adultos com historial clínico de Diabetes Mellitus Tipo 2 e Doença Hepática Gordurosa Não-Alcólica foram suplementados com 300mg/dia do extrato desta planta.
Os resultados mostraram que após 16 semanas de suplementação com o extrato ocorreu a diminuição dos níveis serológicos de aspartato aminotransferase e de alanina aminotransferase, biomarcadores de doenças hepáticas.
Vincenzo Musolino, Micaela Gliozzi, Ezio Bombardelli, Saverio Nucera, Cristina Carresi, Jessica Maiuolo, Rocco Mollace, Sara Paone, Francesca Bosco, Federica Scarano, Miriam Scicchitano, Roberta Macrì, Stefano Ruga, Maria Caterina Zito, Ernesto Palma, Santo Gratteri, Monica Ragusa, Maurizio Volterrani, Massimo Fini, Vincenzo Mollace, (2020)The synergistic effect of Citrus bergamia and Cynara cardunculus extracts on vascular inflammation and oxidative stress in non-alcoholic fatty liver disease, Journal of Traditional and Complementary Medicine, 10, 268. DOI: 10.1016/j.jtcme.2020.02.004.
Para uma revisão da literatura sobre o potencial biomédico de extratos de C. cardunculus no tratamento de distúrbios do metabolismo consultar:
Silva, L.R.; Jacinto, T.A.; outinho, P. Bioactive Compounds from Cardoon as Health Promoters in Metabolic Disorders. Foods 2022, 11, 336. https://doi.org/10.3390/foods11030336.
O potencial anti-inflamatório da Cynara cardunculus
Em 2020, os extratos etanólicos das folhas de C. cardunculus foram usados para preparar filmes à base de quitosano para ser usados como curativos em feridas crónicas.
Este interessante estudo demostrou que estes filmes apresentam atividade anti-inflamatória, promovendo a redução nos níveis da citocina pró-inflamatória IL-6 numa linha celular de fibroblastos da pele, mostrando o seu potencial no tratamento de feridas crónicas.
Teresa Brás, Daniela Rosa, Ana C. Gonçalves, Andreia C. Gomes, Vítor D. Alves, João G. Crespo, Maria F. Duarte, Luísa A. Neves, (2020) Development of bioactive films based on chitosan and Cynara cardunculus leaves extracts for wound dressings, International Journal of Biological Macromolecules, 163:1707. DOI: 10.1016/j.ijbiomac.2020.09.109
O efeito anti-inflamatório na Doença Inflamatória do Intestino dos extratos das folhas da C. cardunculus, foi estudado em 2022 por um grupo de investigação italiano.
Através de estudos in vitro, estes extratos ricos em compostos polifenólicos, demonstraram proteger as células epiteliais intestinais do estímulo inflamatório, modulando as vias de sinalização celular envolvidas na inflamação através da neutralização dos efeitos pró-inflamatórios induzidos pela citocina TNF-α.
Speciale A, Muscarà C, Molonia MS, Toscano G, Cimino F and Saija A (2022) In Vitro Protective Effects of a Standardized Extract From Cynara Cardunculus L. Leaves Against TNF-α- Induced Intestinal Inflammation. Front. Pharmacol. 13:809938. doi: 10.3389/fphar.2022.809938
Cynara cardunculus no tratamento do cancro
As propriedades antitumorais de vários extratos de plantas, incluindo a C. cardunculus, foram estudadas numa linha celular tumoral de osteossarcoma (células U2OS). Este estudo mostrou que os extratos desta planta são ricos em lactonas e possuem elevada atividade anti-proliferativa. O mecanismo de ação destes extratos sob esta linha celular tumoral foi justificado através da ativação das caspases, proteínas responsáveis pela morte celular por apoptose.
Cappadone, Concettina, Manuela Mandrone, Ilaria Chiocchio, Cinzia Sanna, Emil Malucelli, Vincenza Bassi, Giovanna Picone, and Ferruccio Poli. 2020. "Antitumor Potential and Phytochemical Profile of Plants from Sardinia (Italy), a Hotspot for Biodiversity in the Mediterranean Basin" Plants 9, no. 1: 26. https://doi.org/10.3390/plants9010026
Em 2022, um interessante estudo mostrou que os extratos lipofílicos das folhas da C. cardunculus conseguem modular o ritmo circadiano das células tumorais, aliando propriedades anti-proliferativas. É sabido que ciclos circadianos desregulados estão associados a maior suscetibilidade de cancro e pior resposta aos tratamentos. Este ciclo é controlado por genes específicos que estão envolvidos em processos celulares associados com a progressão do tumor, metabolismo de fármacos e ciclo celular. Neste estudo, os extratos da C. cardunculus mostraram um efeito direto no fenótipo circadiano das células tumorais do cancro colorretal humano (HCT116) e inibiram a proliferação destas células.
Fuhr, L.; Basti, A.; Brás, T.S.; Duarte, M.F.; Relógio, A. Antiproliferative Effects of Cynara Cardunculus in Colorectal Cancer Cells Are Modulated by the Circadian Clock. Int. J. Mol. Sci. 2022, 23, 9130. https://doi.org/10.3390/ ijms23169130
Com o crescente interesse da comunidade científica nas propriedades biológicas dos extratos da planta do cardo, não será de estranhar que novas aplicações biomédicas venham a ser descobertas e publicadas.